O armário bissexual
Dois estudiosos da sexualidade humana contribuíram para afastar a idéia de que a homossexualidade e a bissexualidade sejam patologias. Um deles é o famoso Alfred Kinsey, que, no início do século 20, estudou a sexualidade do norte-americano e, a partir de pesquisas, concluiu que tanto o heterossexual “puro” quanto o homossexual “puro” são raros.
As pesquisas levaram Kinsey a propor uma “escala da sexualidade”, a Escala Kinsey, hoje bastante conhecida. Suas idéias foram disseminadas, e a sociedade, a passos lentos, vem aprendendo e repensando seus conceitos.O outro estudioso foi o psiquiatra Fritz Klein, que, na década de 80, começou a questionar e rever a Escala Kinsey, percebendo algumas de suas limitações. A proposta de Klein é a de que a orientação sexual é fluida, ou seja, varia no tempo, não é estática.
O psiquiatra criou, então, um novo instrumento para avaliar a orientação sexual: a Grade Klein, que leva em consideração as fantasias preferidas, o estilo de vida preferido, as práticas no presente, as experiências passadas e o ideal para um futuro. Adotando esses critérios, o “índice” de bissexuais seria bem maior do que se poderia imaginar a princípio - mas, afinal, o que é a bissexualidade?
Podemos, de forma simplificada, adotar algumas das reflexões de Fritz Klein e dizer que é a atração sexual, emocional e afetiva por pessoas de ambos os gêneros. A bissexualidade não necessariamente implica na relação sexual: alguém que fantasie com ambos os sexos pode se identificar como bissexual, ainda que não exerça a dupla orientação.
Aliás, ao pensarmos em bissexualidade, é bom refletirmos que o que se “opõe” à palavra “bissexual” não são as expressões “heterossexual” ou “homossexual”, mas o termo “monossexual”, que também é bem diferente de “monógamo” (ter apenas um parceiro).
As palavras “bissexual” e “monossexual” não indicam o número de parceiros ou parceiras que se tem ou terá, apenas dizem se o desejo é orientado para os dois sexos ou somente para um deles. Evidentemente, bissexuais podem ser monógamos, dependendo, é claro, dos relacionamentos que estabelecem.
Os estudos em relação à bissexualidade ainda são poucos se comparados com os dedicados à homossexualidade, mas, de uma maneira geral, já se concluiu que alguém que hoje seja convictamente heterossexual pode, amanhã ou depois, envolver-se em uma relação homossexual - e vice-versa. Em alguns casos, pode-se ficar alternando os tipos de relacionamento (hétero ou homossexual) e, em outros, fixar-se em apenas um deles.
É importante ter em mente que essa possível alternância tanto pode ser por puro desejo como também por dificuldades de se aceitar ou se sentir aceito como bissexual. A imagem do bissexual ainda é negativa, e, por isso, é importante que se entenda que a alternância não indica necessariamente uma estratégia “para se dar bem”, levando vantagem em tudo.
Muitas vezes, acontece, por um lado, de o bissexual lutar desesperadamente contra seus próprios desejos, para se sentir pertencendo a um dos grupos. É um tipo de conflito que também acontece com alguns homossexuais, homens ou mulheres - mas, enfim, existem várias escolhas (de comportamento) possíveis, até mesmo a abstinência sexual - e a mente é livre para fantasiar...
Por outro lado, a variedade de comportamentos entre os bissexuais (poderíamos dizer que existem várias bissexualidades?) gera insegurança em seus parceiros, sejam eles homossexuais, sejam heterossexuais. Ao mesmo tempo, dificulta as pesquisas, já que as pessoas muitas vezes não assumem essa identidade e usam temporariamente a de um e a de outro grupo.
Por isso, acredito na importância de os bissexuais, ao se engajarem na batalha pelo direito à livre expressão sexual, assumirem mais o “orgulho bi”. Fora do Brasil, há um movimento maior para conseguir visibilidade: o Bi Pride. A bandeira bi, que é diferente da bandeira gay, é tricolor e mostra ambos os desejos (homo e hétero), convivendo em harmonia. É ostentada nas Paradas GLBT lá fora.
Aqui, no Brasil, desconheço qualquer organização exclusivamente bissexual - e, infelizmente, essa postura, trancada dentro do armário, acaba mantendo a invisibilidade bissexual, o que faz com que muitas pessoas achem que a bissexualidade não existe, que existem apenas confusão e indefinição...
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No que diz respeito à homossexualidade, muito se fala sobre a decisão de “sair do armário”, de assumir-se como homossexual, e das dificuldades que essa escolha acarreta. Inegavelmente, é importante estimular essa “saída”, que ajuda os homossexuais a fortalecerem sua identidade, facilitando a conquista de seus direitos e de sua aceitação. Entretanto, por mais que haja essa urgência social, é bom enfatizar que o processo de saída do armário não é meramente uma questão de coragem pessoal e tampouco de honestidade, como algumas pessoas afirmam. Vários aspectos da vida pessoal, profissional e familiar são levados em consideração. Enquanto decide se sai ou não do armário (ou pondera quando e como sair), a pessoa atravessa momentos difíceis, de avanços e retrocessos. Pode, inclusive, optar por não sair nunca.
A este respeito, outros artigos deste site falam sobre o assunto e de como planejar a revelação para as pessoas significativas. Muitas vezes, um processo psicoterapêutico ou grupos de apoio serão fundamentais para ajudar na decisão de assumir-se ou não para o mundo.
Venho estudando especificamente a bissexualidade, desde que atendi a um cliente bissexual. Para entender mais do assunto, comecei a entrevistar bissexuais (homens e mulheres) e descobri vários pontos semelhantes entre bis e homossexuais. Um deles é o preconceito que enfrentam. No caso dos bissexuais, chama-se bifobia. Ainda não ouvi ninguém usando o termo aqui no Brasil - até porque poucas pessoas falam abertamente sobre a bissexualidade.
Apesar de não conhecer estatísticas brasileiras sobre o assunto (penso que nem existem), acredito que o bissexual enfrente um preconceito ainda maior do que o enfrentado pelos homossexuais. Em geral, bissexuais são “malvistos” não só por heterossexuais, mas também por muitos gays e lésbicas. Muitos héteros e homossexuais acreditam que os bissexuais só querem “o melhor de ambos os mundos”.
Generaliza-se, assim, sobre todos eles, que são acusados de quererem as vantagens da heterossexualidade - mas é interessante perceber que já se pode dizer que há privilégios gays também. Atualmente, por exemplo, a identidade homossexual está mais fortalecida do que a bissexual, cuja existência ainda é negada por muitos.
A mídia e as artes têm um papel importante na construção da imagem acerca de homos ou bis. Em geral, bissexuais são retratados como pessoas não-confiáveis, dissimuladas. Muitas vezes, são personagens vampirescas (literalmente). Com essa representação tão negativa, não fica difícil entender o preconceito internalizado que muitos bissexuais têm, o que contribui para que tenham dificuldade de se auto-identificarem como bis. Sem se assumirem, ficam invisíveis e são considerados inexistentes.
A questão é complicada. Algumas pessoas bissexuais simplesmente não entendem que podem ter desejos por ambos os sexos sem que isso signifique uma patologia. Afinal, a “norma” de saúde ainda é ser heterossexual. Muito tardiamente, a medicina e a psicologia apontaram que esse era um conceito errado.
se assumir a homossexualidade pode ser uma escolha difícil - em alguns casos, um verdadeiro ato heróico - assumir a bissexualidade, mais ainda. Ser bissexual, em vez de monossexual, é visto como uma questão de valores morais “duvidosos”. Muitos bissexuais ficam confusos e aí pensam: “ainda não me defini”. Alguns não “se definem” nunca. Oscilam, usando uma hora o rótulo de homossexual, em outra o de heterossexual e deixando as pessoas confusas e inseguras a respeito de com quem estão lidando. Ainda pior: muitos se definem pela pressão social (seja na homo, seja na heterossexualidade), sem serem verdadeiramente felizes.
Na verdade, o armário bi tem duas portas: uma para homossexualidade, outra para a heterossexualidade. E abrir ambas ao mesmo tempo requer muito mais do que coragem: requer auto-aceitação, auto-entendimento. Afinal, é duplamente difícil se assumir gostando de ambos os sexos - por vezes, indistintamente; por outras, com alguma preferência.Muitos homos e héteros não conseguem ficar à vontade nas relações com bissexuais. Ressaltam a insegurança básica de serem traídos. Nos dois ambientes, o bissexual tem que lidar com a incompreensão e o preconceito.
Para possibilitar a saída desse armário de portas duplas, acredito que a única alternativa seja a de se organizar coletivamente. Psicoterapia pode ajudar também, desde que o profissional não seja preconceituoso. Mas, coletivamente, será possível a construção de comunidades e grupos bissexuais, como vem sendo feito fora do Brasil. Nestes tempos de Internet, é rápido e fácil aprender com a experiência de outros grupos, mesmo estrangeiros, adaptando-os para nossa realidade e aprimorando-os, reunindo pessoas com pensamentos, sentimentos e desejos afins.
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conheça o simbolismo da bandeira dos bissexuais
Bandeira do orgulho bi: o rosa representa o desejo por pessoas do mesmo sexo; o azul, por pessoas do sexo oposto; o roxo, a bissexualidade. O simbolismo sustenta-se no fato de que os pixels roxos não são percebidos entre os pixels azuis ou rosas de uma imagem.
Thays BaboBandeira do orgulho bi: o rosa representa o desejo por pessoas do mesmo sexo; o azul, por pessoas do sexo oposto; o roxo, a bissexualidade. O simbolismo sustenta-se no fato de que os pixels roxos não são percebidos entre os pixels azuis ou rosas de uma imagem.
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* Thays Babo é psicóloga clínica, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-Rio e publicitária. Há um ano, entrevista e estuda bissexuais.
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